Breves notas sobre o perigo de falência da realidade
Abriu a porta e descobriu que esta dava
dido até domínios inimagináveis a experiên-
acesso a um pequeno corredor, não muito
cognitiva dos indivíduos. Tal como a Alice,
Ajoelhou-se e, ao espreitar pelo corredor,
já poucas coisas se nos afiguram como im-
viu do outro lado o mais encantador dos
possíveis de realizar. O que hoje é (potenci-
jardins. Como ansiava por sair daquele
almente) permitido ultrapassa largamente o
átrio escuro e passear por entre aqueles
nosso imaginário, na medida em que, rees-
canteiros de flores de cores vivas e aquelas
trutura não apenas o mundo mas também, e
fontes de água fresca! . . . Mas nem sequer a
de forma significativa, o próprio ser humano. cabeça lhe cabia no buraco. “E mesmo que
Os entusiastas desta nova sociedade exal-
coubesse”, pensava a pobre Alice, “de que
tam os seus anunciados benefícios e promes-
serviria sem os ombros? Oh, como eu
sas democratizantes enquanto que os detrac-
gostava de poder fechar-me como um
tores propõem a contestação e a luta con-
telescópio! Acho que poderia, se soubesse
tra as suas antevistas injustiças e perversi-
como começar!”. Na verdade, tantas coisas
dades. Contudo, a ideia de que estará a ser
extraordinárias se tinham passado
atingido um ponto sem retorno, parece ser
recentemente que Alice começava a
consensual. Concordar com esta ideia não
convencer-se de que poucas seriam as
significa que aceitemos como inevitáveis as
consequências sociais, económicas e políti-cas de alguns desenvolvimentos científico-
Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas
tecnológicos, mas apenas que nos parece ób-vio que há que repensar alguns conceitos que
antes nos pareciam estáveis e unívocos.
arquitecta de uma sociedade sem preceden-
tes, em que são depositadas, simultanea-
dificou irremediável e definitivamente foi o
mente, todas as esperanças e todos os re-
conceito de realidade, alteração que decorre
ceios. Em particular, a tecnologia, nas suas
da ruptura radical com anteriores paradig-
realizações e potencialidades, parece des-
mas. Apesar de, desde a Antiguidade Clás-
truir fronteiras antes estabilizadas, expan-
sica, o conceito ter suscitado inúmeras refle-
∗Mestranda em Comunicação, Cultura e Tecnolo-
xões de âmbito filosófico, este tem sido do-
gias da Informação no ISCTE. Docente na Escola Su-
perior de Educação do Instituto Politécnico de Setú-
oposto, afirmando-se que aquilo que é real
só pode ser compreendido em contraposição
tica, metaestável, programática, impecável,
ao aparente, ao potencial. O que isto signi-
que oferece todos os signos do real e lhes
fica é uma distinção absoluta entre o que se
curto-circuita todas as peripécias.
considera do domínio da essência, do ser e o
nunca mais terá a oportunidade de se pro-
que se enquadra no domínio do ilusório, do
duzir (. . . ). Hiper-real, doravante ao abrigo
artificial. Contudo, a ampliação das poten-
do imaginário, não deixando lugar senão à
cialidades tecnológicas tem suscitado o ba-
recorrência orbital dos modelos e à gera-
ralhar das anteriores categorizações e origi-
ção simulada das diferenças.” (Baudrillard,
nado, segundo alguns pensadores, a hibrida-
1991[1981], p.9). Esta seria, segundo o au-
ção entre os dois domínios ou mesmo a subs-
tor, a consequência inexorável do novo con-
tituição do primeiro pelo segundo.
modo, o que este trajecto propõe não é, me-
ramente, a assunção de uma polissemia asso-
como o já citado, Jean Baudrillard ou Paul
ciada ao conceito de realidade mas, antes, a
Virilio, encaram de modo catastrofista a pas-
sua negação. O culminar deste processo se-
sagem para o domínio da pós-realidade e a
ria a desrealização do mundo. A realidade
foi superada, afirmam. Vivemos, hoje, numa
e um fechamento do sentido, outros há, que a
consideram como um movimento inevitável,
conducente à possibilidade de exploração de
mim Woolley considera que a realidade pa-
novos universos, capazes de satisfazer, de
rece ter deixado de ser algo “firme” e “ob-
forma cabal, as novas e prementes necessida-
des do indivíduo. Onde os primeiros assina-
lam submissão a uma dinâmica capitalista e
conferência sobre realidade virtual na Grã-
massificadora, os integrados encontram no-
Bretanha, em 1991] e os oradores que se se-
vas formas de expressão da individualidade
guiram observaram, podia manipular a rea-
e possibilidade de evasão, a promessa de
lidade até ao ponto de ser capaz de a criar.
um admirável mundo novo. Como ilustra-
A artificialização já não é apenas uma ques-
ção deste posicionamento, de referir o pensa-
tão de observação cultural ou intelectual,
mento de Pierre Lévy, um auto-denominado
tornou-se real. Por esse motivo é que a re-
optimista, que salienta que o virtual “ é um
alidade deixou de ser segura, não sendo já
uma coisa em que podemos confiar.” (1997
menta os processos de criação [e] abre pos-
[1992], p.19). Jean Baudrillard, talvez o au-
sibilidades e sentidos na vulgaridade da pre-
tor mais referido quando se discute a crise
sença física e imediata.” (2001, p. 12). Ke-
da realidade na sua acepção clássica, levou
vin Robins, no seu livro In to the Image: cul-
esta ideia ao extremo vaticinando a morte do
ture and politcs in the field of vision, alerta-
real e apontando a ficção mediática como a
nos precisamente para o facto de esta ide-
assassina. “Trata-se de uma substituição no
alização das tecnologias se constituir como
real dos signos do real, isto é, de uma ope-
ração de dissuasão de todo o processo real
pelo seu duplo operatório, máquina sinalé-
Breves notas sobre o perigo de falência da realidade
Dois filmes da década de 90, Strange Days (1995) e eXistenZ (1999), elegem a
riosamente, a sua antiga amante, para quem
mesma premissa como fio condutor das suas
retorna virtualmente todos os fins de tarde,
estórias: a necessidade inevitável de fuga à
chama-se Faith. A Faith é, assim, substituída
realidade. E em ambos esta fuga é conse-
por uma nova fé. A fé na tecnologia, recon-
guida através da utilização de dispositivos
fortante e apaziguadora. A personagem des-
tecnológicos. Estes dispositivos são as ex-
creve assim as potencialidades da droga pós-
tensões do corpo anunciadas por Marshall
moderna: Isto não é uma versão melhoradade televisão. Isto é a vida real. É um bocado
em simultâneo todos os sentidos. Sobre a
da vida de alguém. É puro e sem cortes di-
necessidade de sair da realidade e a capa-
rectamente do córtex cerebral. Está lá, está
cidade das máquinas para a satisfazer, diz-
a fazê-lo, está a ouvi-lo. Está a senti-lo. Se
nos Kevin Robins: “Technologies function
quiser esquiar sem sair do escritório pode
to mediate, do defer, even to substitute for,
fazê-lo. E aquilo que não pode ter? O fruto
interaction with the world. We use them to
avoid contact with the world and its reality.
Through contact we risk feeling the world
as alien; through the sense of touch we risk
expousure to its chaotic or catastrophic na-
ture.(. . . ) There is nothing we fear more than
tem a dupla capacidade de registar e emitir
the touch of the unknown. Our technologies
keep the world at a distance.” (1996, p.19)
espécie de rede, que deve ser posicionada no
Em Strange Days, filme realizado por
topo da cabeça de modo a conectar-se com o
cérebro, e está ligado, através de um sistema
de James Cameron, a necessidade de manter
wireless, a um aparelho receptor, do tama-
o mundo à distância decorre da insustenta-
bilidade da vida quotidiana, demasiado vio-
lenta, plena de tensões sociais e ausente de
eXistenZ, o outro filme referido, escrito
perspectivas relativamente ao futuro. Esta
e realizado por David Cronenberg, propõe
realidade, da qual se procura evasão, é-nos
uma justificação, aparentemente diferenci-
mostrada pela perspectiva de um ex-polícia,
ada, para a necessidade absoluta de evasão.
Lenny Nero, transformado em dealer de uma
Supõe-se inicialmente que esta decorre de
nova substância inebriante: gravações fei-
um sentimento de total segurança que torna
tas directamente a partir do córtex cerebral.
a vida de todos os dias demasiado enfadonha
Quem visionar estas gravações pode aceder
para ser suportada. A protagonista desta es-
directamente às emoções e experiências ex-
tória, Allegra Galler, uma idolatrada desig-
citantes vivenciadas por outros e senti-las
ner de jogos de realidade virtual, incita ao
como suas. Tal como os seus clientes, tam-
seu parceiro a voltar com ela para o jogo de-
pois de este o ter suspendido: Estamos segu-ros, é enfadonho. Queres voltar para o res-
reencontro com a sua memória e a perpé-
taurante chinês porque, aqui, nada acontece.
Neste filme, a realidade é vista como multi-
desconhecido. Assim, a irrealidade, a fanta-
dimensional e o salto para outras dimensões
sia surge em ambos os filmes como um porto
diferentes das já experimentadas, como pro-
de abrigo. Curiosa é, contudo, a promessa de
metedor de novos prazeres e emoções. O in-
semelhança com a realidade. O que ajuda a
divíduo é caracterizado como um peão den-
venda do produto, seja este a substância ilí-
tro do jogo que é comandado por uma força
cita do primeiro filme ou a celebrada pana-
superior. O companheiro de Allegra, Pikul,
ceia do segundo, é a verosimilhança, a pos-
surpreende-se com o seu próprio comporta-
sibilidade de ser confundida com a realidade
mento. Esta tranquiliza-o dizendo que é ne-
cessário que cada personagem assuma o seu
Exige-se a similitude com a realidade mas
papel previamente definido para dar conti-
apagam-se, em seguida, todos os seus sinais.
nuidade ao jogo. Pikul deve resignar-se a
O que se pretende afinal é uma realidade sem
representar esse papel sob pena de desequi-
desilusão que perpetue o prazer e interrompa
librar a estrutura. Este sorri perante a neces-
a dor. Uma realidade expurgada de culpa e
sidade de abdicar do seu livre arbítrio. É o
de responsabilidade. Nero diz a um cliente
preço a pagar pela entrada no território pro-
que este pode trair virtualmente a mulher o
que não acarreta o risco de ser apanhado. Al-
Em eXistenZ a porta para o hiper-real é
legra mata sem escrúpulos. Isto porque, do-
um dispositivo, designado por POD (ou ca-
ravante, nenhuma acção pode comprometer.
súlo), muito distinto do SQUID. Aliás ao
É a possibilidade de refúgio num mundo es-
longo do filme, e das diversas dimensões de
terilizado, sem consequências. É a realidade
realidade por onde vão sendo conduzidas as
sem real. No novo universo é sempre possí-
personagens este reconfigura-se de modo a
vel pôr a experiência em pause. Além disso
adequar-se ao seu contexto. Contudo, este
nada nos vincula às decisões tomadas, pode-
mos dizer algo e em seguida o seu contrário
nico, disforme mas sensual, que reage com
e fazer delete das opções erradas.
espasmos e gemidos ao contacto humano.
cura de fuga à realidade é simultaneamente
a fuga à natureza humana, entendida como
corpo do utilizador, sua fonte de alimenta-
ção. A ligação é feita por um fio em formato
de cordão umbilical que penetra dentro do
capacidade cognitiva e performativa parece
corpo humano através de um orifício feito na
ter sublimado o receio do desaparecimento
base da coluna do utilizador (bio-port). POD
e o utilizador condicionam-se mutuamente.
afirma Hermínio Martins (2003), a ultra-
Quer em Strange Days quer em eXistenZ,
a existência não real é muito mais apetecí-
sejo, traduz-se numa inevitabilidade “Para
rente argumentação, em ambos, se confirma
a suspeita de Robins anteriormente enunci-
processo de transformação tecnoeconómica,
ada: não há nada que temamos mais do que o
tecnocibernética, possivelmente nanotecno-
Breves notas sobre o perigo de falência da realidade
lógica, muito abrangente e acelerado (não te-
dade dos discursos da actualidade. Como te-
mos outro remédio), que não nos deixará so-
mos vindo a evidenciar, está hoje dissemi-
breviver – pelo menos não nos deixará sobre-
nada a ideia de uma inevitabilidade associ-
viver como homo sapientes, ou pelo menos
ada ao processo tecnológico. Ora esta cons-
tatação torna ainda mais interessante o des-
Já não é o indivíduo quem controla a ac-
fecho desta narrativa fílmica. Nero recusa a
ção. Quem o faz é a máquina tecnológica e
irrealidade e a prótese que lhe prolonga os
o sistema que a engendrou. A decisão é do
designer, do criador. Nada é feito que não es-
Já em eXistenZ a conclusão é eivada de
teja pré-determinado. Trata-se afinal de uma
maior subjectividade. Como assinalámos, a
experiência religiosa em que nos submete-
estória desenvolve-se em vários patamares
mos à vontade de um deus que nos monito-
de realidade sendo que o principal desafio
riza, manipula e tranquiliza. Confie em mim,
das personagens, e também do espectador, é
sou o seu padre, o seu psiquiatra, a sua liga-
a identificação de signos que possam estabe-
ção ao painel de controlo das almas. Sou o
lecer a distinção entre a realidade real (ex-
mágico (. . . ).−−propõe Nero.
terior ao jogo) e a realidade virtual. No en-
Esse deus é a ciência que, associada à tec-
tanto, a crescente imbricação entre estas e a
nologia, é hoje a entidade que tudo pode. O
redundância dos sinais leva a uma situação
novo deus dissemina a ideia de perda do te-
de perfeita indefinição. A realidade, o es-
los existencial e faz acreditar que só um novo
tádio fundador, é indistinguível dos restan-
universo a pode restituir. A única maneira desaber a finalidade do jogo é jogando-o - diz
ção contra aquilo que é designado como a
grande desfiguração da realidade. Isto é, há
encontra maneira de invadir o mundo ciber-
sempre alguém que contesta a artificializa-
nético e resgatar as personagens, embora,
ção da realidade e que tenta matar o obreiro
nunca sem resistência. Em Strange Days,
dessa ilusão: o designer do jogo. Contudo,
revelação, em que compreende que não pode
é se alguma vez conseguiremos interromper
abdicar da sua condição humana ainda que
o loop, ou se afinal ficaremos aprisionados
esta lhe pareça difícil de suportar. É Ma-
para sempre no hiper-real. O filme encerra-
se com a perturbante questão: Ainda estamos
rante toda a estória se recusa a utilizar o
no jogo? Nunca saberemos. Aquilo que nos
SQUID e a usufruir das anunciadas delícias
parece a realidade pode ser apenas mais uma
proporcionas pela hiper-realidade, que o in-
estratégia de substituição e imitação dos seus
signos. As próteses, nesta estória, carnais
p.54) assinala que esta possibilidade dos in-
e voláteis penetram no corpo e misturam-se
divíduos terem como alternativa não abdi-
como este. Não é possível renunciar-lhes.
car da sua carnalidade, ainda que reconhe-
Estamos, assim, perante duas visões dis-
çam as consequências que daí podem advir,
tópicas em que uma admite o regresso a re-
parece não ter encontrado eco na generali-
alidade fundadora e a outra que considera
que o mundo real ficou perdido entre muitas
CARROLL, Lewis (2000 [1865]), Alice nopaís das maravilhas, Lisboa: D. Qui-
monstra a possibilidade de libertação em re-
lação à força opressora a partir do momentoque questiona as suas regras e outra que se
LÉVY, Pierre (2001, [1998]), O que é o vir-
submete acriticamente ao seu domínio e que
assim se torna incapaz de lhe escapar.
MARTINS, Hermínio (2003), Aceleração,
No prefácio da edição portuguesa do livro
progresso e experimentum humanum In
de Henri-Pierre Jeudy, A Sociedade Trans-bordante, Adriano Duarte Rodrigues procura
Luís (coord.) (2003), Dilemas da Ci-
identificar razões que poderão ser responsá-
vilização Tecnológica, Lisboa: Instituto
veis pela falência da realidade: “A realidade
de Ciências Sociais, Parte I, Cap. I, pp.
pertence ao domínio do acidental; irrompe
sem aviso prévio e viola o curso normal eregular do mundo; sobrepõe-se às nossas ex-
ROBINS, Kevin (1996), In to the Image: cul-
pectativas e perturba as nossas visões habi-
ture and politcs in the field of vision,
tuais do mundo. (. . . ) Não admira que, para
a modernidade faustiana, esta resistência doreal se tenha tornado insuportável para o do-
RODRIGUES, Adriano Duarte (1995), Pre-
mínio da razão, para a vontade de tudo com-
fácio In JEUDY, Henri-Pierre (1995), A
preender e explicar racionalmente, de tudo
Sociedade Transbordante, Lisboa: Sé-
Ora, em função dessa vontade de controlo
WOOLLEY, Benjamin (1997 [1992]), Mun-
de que o autor nos dá nota, teremos já as-
dos virtuais: uma viagem na hipo e
sumido a condição de organismos cibernéti-
cos, ciborgs, “semiorgânicos e semielectro-mecânicos, híbridos biocibernéticos, simbio-ses do homem e da máquina” (Martins, 2003,p.27)? Será a realidade já apenas maquinal-mente determinada, matemática, abstracio-nal? Ou estaremos ainda a tempo de resgataro absurdo da realidade e de reafirmar a nossasingularidade original? Se assim não for, oque restará?
Bibliografia
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